3 de out. de 2025

EU, O SÚDITO E O REI

 



É comum ter sonhos estranhos ao dormir na casa da minha avó. Raras são as noites em que durmo lá e não sonho com criança, bruxas, fadas, gnomo e rainhas. Nesse fim de semana, por exemplo, eu sonhei com um rei. Um rei punitivo. Rei que manda atirar aos cães o vassalo que erra. Nesse sonho, um servo, o mais antigo do reino, cometeu um deslise. O rei, como de hábito, mandou que o atirassem às feras. Momentos antes da execução, o súdito pede aos guardas para falar com o rei, que concorda em ouvi-lo: — “Majestade, eu o servi por 10 anos e nunca errei. Agora, por conta de um pequeno erro, vossa majestade manda me matar. Se vossa realeza autorizar, eu gostaria de passar 10 dias com os mesmos cães que me devorarão”. O rei concordou. Concluído o período estipulado, o monarca determinou a execução da sentença. No entanto, em vez dos cães o devorarem, começaram a lamber suas mãos, seu rosto e seus pés. O monarca, furioso, pergunta o que fizeram com eles, de modo a levá-los a agir daquela maneira? O servo, com a cabeça baixa, respondeu: — “Dediquei-me a esses animais durante dez dias e, como vossa majestade pode observar, hoje me lambem o rosto, as mãos e os pés, enquanto vossa majestade, a quem servi por dez anos, ordena minha execução”.
Acordei com vovó perguntando se eu queria o café na cama ou se ia tomá-lo com ela?

29 de set. de 2025

A COZINHA É DE QUEM?

 



              Quem diria que alguém conseguisse tirar minha mãe da cozinha! Pois meu pai conseguiu.
— “Hoje o almoço é comigo” — deu um laço no avental amarrado à cintura e continuou falando: — “não quero ninguém dando palpite na minha comida!”
— “Que diabo deu nele pra falar desse jeito?” — Perguntou minha mãe.
A pulga, que, normalmente, fica atrás da orelha, tomava um vulto maior.
— “O que foi que deu no teu pai?” — Perguntou minha mãe. — Sei lá — respondi — desde que não nos mate — falei baixo para só ela ouvir.
Quarenta minutos depois, desvendou-se o mistério.
— “O risoto que vamos comer aprendi no programa da Ana Maria!” — Disse ele, servindo os pratos.
— Eu nem sabia que meu pai assistia ao programa — falei, cobrindo a boca.
Na primeira garfada, percebi o sabor da comida. Temia que esquecesse o arroz ou o frango, mas não. Tudo estava certinho e muito bem temperado. Antes da gracinha que mamãe costuma fazer, ele foi avisando: — “não se acostumem porque é só hoje. Amanhã a cozinha é de vocês.” 
Ouvindo aquilo, minha mãe levantou-se, e, de boca cheia, bateu palma para ele. Não sei se pela comida ou pelo que disse, mas antes que ela voltasse a sentar, ergui o meu garfo e falei: — Nada disso, papai! Amanhã tenho aula, sabia? Mas pode deixar que a louça de hoje é comigo! 


26 de set. de 2025

O DOCE DA CRIANÇADA.

 



      Meus tios davam doces desde que eu era pequena. Ele afirmava que era promessa da minha tia, enquanto ela garante que é por tradição. Muitas vezes, antes da data, eu os via preparando os saquinhos, mas dá-los a mim ninguém dava, só no dia seguinte.    Aquelas eram as 24h mais longas da minha vida. Na tarde seguinte, já no dia 27, meus tios levavam os saquinhos para o portão numa bolsa de supermercado. O legal era ver a expressão de cada criança ao abri-los. Umas se encantavam, enquanto outras, com tristeza, por não conseguir uma extra para dar ao irmão que ainda não anda sozinho. Mas, de resto, era o mesmo de sempre. Muitos saquinhos para um número ainda maior de crianças. Nem todos conseguiam os doces que foram buscar. Também existiam os espertos que desejavam — e, em alguns casos, conseguiam — abocanhar mais de um.
Eu realmente não considero que dar doces no dia de Cosme e Damião seja uma prática religiosa. Embora tenhamos consciência de que a celebração está relacionada à Igreja Católica e aos cultos afro-brasileiros, como a Umbanda e o Candomblé. Mas, para mim, o mais importante é a tradição que enxergo como parte do nosso folclore, o que, a meu ver, deve ser preservada.
Bora lá, pegar doce, tia Rô!, diz a filha de seis anos, da minha prima, a quem pego no colo para beijar sua face, sorrindo.


22 de set. de 2025

AMO SIM, E DAÍ?

 


     Aqueles que já amaram algum dia garantem que amar é uma experiência que envolve alterações físicas e emocionais, das quais não discordo. Que a pessoa fica mais alegre, eufórica e com os batimentos cardíacos alterados. Isso, segundo eles, é amar. O que significa que estou, desesperadamente, apaixonada, mas, infelizmente, nem sei por quem. Os sintomas são parecidos, só eu não sou mais aquela que o espelho do meu quarto mostrava. Ultimamente tenho agido diferente, sou mais paciente e até o meu humor melhorou, como ouvi minha mãe dizer à professora de hebraico por quem nutro verdadeiro “khibud”.
Ouvindo aquela conversa, pensei: a mudança existe, está aí aos olhos de cada um. Em cinco anos passei de menina para mocinha e agora mulher, mas amar, coisa que faço na maior simplicidade, já não amo igual. Amo, como quem ama uma determinada pessoa, mas, tipo maluca, não sei por quem ando assim. Felizmente mudou para melhor, diz meu pai, que não é outra pessoa senão eu, vestido de calças e mocassins. Todos dizem o que jamais me permiti admitir: a diferença de mim para o meu pai é o bigode e, como ninguém tem bigode lá em casa…




17 de set. de 2025

PRIMEIRO LIVRO

 



       Quando aprendi a ler, o primeiro livro que me deram falava de um homem pobre e sem sorte que, caminhando, teria visto uma pedra distinta das que já havia encontrado. Não se tratava de um diamante ou objeto de valor inestimável, mas, devido à singularidade, a levava sempre no bolso. Não pensava em desgrudar do achado e, até para dormir, optou por levá-la consigo. O apego era tão intenso que acabou sonhando com ela. No sonho, um gênio indicou a pedra e falou: — “Esta pedra possui um considerável valor. Provavelmente o mais importante de todos. Se a apertar entre as mãos e fizer três pedidos. Três milagres ocorrerão, mas tem uma coisa, lembrou o gênio, a intenção é pedir para outras pessoas.
O homem ficou extremamente desapontado, mas continuou tentando transformar sua vida através dos pedidos. — “Então, se eu não posso ter nada para mim, também não vou pedir nada para ninguém”. — Pensou, colocando a pedra numa gaveta, onde permaneceu por 50 anos, esquecida. Certa noite, já idoso, ao remexer suas coisas nessa gaveta, deparou-se com a pedra e, considerando sua velhice, a pobreza e a infelicidade, decidiu fazer os pedidos, desta vez em nome de outras pessoas. Mas nada aconteceu. Somente o gênio, o mesmo de 50 anos atrás, surgiu, com os braços cruzados, falando: — “Tomaste finalmente a decisão de fazer o bem a alguém e, como tens direito a três pedidos, o terceiro é teu”.
Ouvindo isso, o homem levou as mãos ao rosto e começou a chorar. Chorou muito, pensando que, se não fosse tão egoísta, se tivesse um pouquinho de amor pelo próximo, certamente sua vida, agora aos 70 anos, também teria mudado.
Não resisti e reli o livrinho outra vez.