17 de set. de 2025

PRIMEIRO LIVRO

 



       Quando aprendi a ler, o primeiro livro que me deram falava de um homem pobre e sem sorte que, caminhando, teria visto uma pedra distinta das que já havia encontrado. Não se tratava de um diamante ou objeto de valor inestimável, mas, devido à singularidade, a levava sempre no bolso. Não pensava em desgrudar do achado e, até para dormir, optou por levá-la consigo. O apego era tão intenso que acabou sonhando com ela. No sonho, um gênio indicou a pedra e falou: — “Esta pedra possui um considerável valor. Provavelmente o mais importante de todos. Se a apertar entre as mãos e fizer três pedidos. Três milagres ocorrerão, mas tem uma coisa, lembrou o gênio, a intenção é pedir para outras pessoas.
O homem ficou extremamente desapontado, mas continuou tentando transformar sua vida através dos pedidos. — “Então, se eu não posso ter nada para mim, também não vou pedir nada para ninguém”. — Pensou, colocando a pedra numa gaveta, onde permaneceu por 50 anos, esquecida. Certa noite, já idoso, ao remexer suas coisas nessa gaveta, deparou-se com a pedra e, considerando sua velhice, a pobreza e a infelicidade, decidiu fazer os pedidos, desta vez em nome de outras pessoas. Mas nada aconteceu. Somente o gênio, o mesmo de 50 anos atrás, surgiu, com os braços cruzados, falando: — “Tomaste finalmente a decisão de fazer o bem a alguém e, como tens direito a três pedidos, o terceiro é teu”.
Ouvindo isso, o homem levou as mãos ao rosto e começou a chorar. Chorou muito, pensando que, se não fosse tão egoísta, se tivesse um pouquinho de amor pelo próximo, certamente sua vida, agora aos 70 anos, também teria mudado.
Não resisti e reli o livrinho outra vez.

12 de set. de 2025

O PRÍNCIPE E O DENTE.

 


      Tenho uma leve impressão de já ter comentado sobre o dia em que minha mãe pensou que o dentista a havia beijado. Se meu dente não tivesse doído a nenhum de nós, ela teria contado. — No meu dentista, você não vai! — ela disse olhando para mim. — Não confio mais nele. Se comigo fez o que fez, imagina com você, minha filha! — Agora parecia nervosa. Foi quando soubemos do “beijo”. Ocorre que o dentista, um rapaz educado e muito atraente, sempre me tratou com respeito. Pense em um galã de novela! Você acha que ele iria se envolver com qualquer mulher? Não estou afirmando que minha mãe, mesmo sendo negra, casada e com certa idade, seria incapaz de provocar um homem como fez com meu pai. Sem dúvida que não! Mesmo assim, fui até lá. Quase deitada em uma cama que muitos chamam de cadeira, eu abri a boca e, com os olhos fechados, pensei: será que ele vai me dar um beijo? É evidente que eu não ia permitir. Mas, com os olhos fechados e deitada na sua frente, quem sabe? Sem dúvida, eu fugiria; no entanto, lavar a boca, eu acho que nunca mais lavaria! De uma forma geral, tudo deu certo.
Cheguei com o dente doendo e uma porção de bobagens que mamãe pôs na minha cabeça. Quando saí, o dente já não doía e, graças a Deus, ou infelizmente, nada de mais ocorreu. 

5 de set. de 2025

POR MEDO DE AVIÃO

 


— Pronto, já decolamos — disse meu pai se ajeitando ao meu lado — tente dormir, em duas horas estaremos em Salvador — completou.
O passageiro mais próximo era um homem que parecia muito nervoso.
— Essa coisa vai cair — disse olhando para mim. Pensei tudo de ruim.  Até se tratar de um suicida querendo explodir o nosso avião. Olhando melhor, conclui que não, que não era, por isso perguntei:
— É a primeira vez?
— O quê?
— Perguntei se é a primeira vez que o senhor tá voando?
— Minha preocupação é que seja a última — respondeu agarrado à poltrona.
Olhei pro meu pai, que já cochilava, e, sorrindo, falei para o homem: 
— Fica frio, relaxa! Avião é seguro, mais do que carro ou trem.
— É o que falam, mas na semana passada um já caiu, você viu?
— Não, não vi, mas acidente de automóvel tem toda hora, enquanto avião… 
— Eu sei, mas já pensou se o meu decide cair?
— Olha, respira fundo e esquece que está voando. O senhor é casado? — perguntei.
— Tá perguntando se alguém vai chorar se eu morrer?
– Por favor, não vamos exagerar! Ouça só: sentir medo é normal, mas é como eu disse, não se deixe dominar por ele. Feche os olhos e relaxe.
— Fechar os olhos? Só falta me pedir para dormir.
— A ideia não é má — respondi.
— Você sabia que a pessoa dormindo sofre mais o impacto?
— Não entendi!
— Quando a pessoa está dormindo, os músculos estão relaxados. Dormindo, a dor é maior. O cérebro guarda informações.
— Mas se o senhor está dormindo, não vai sentir nada.
— Mesmo dormindo, a cabeça continua ativa. Por isso a pessoa sofre.
— Aonde o senhor leu essa coisa?
— Não lembro, mas acho que foi um especialista em traumo no Google. Tá sentindo? Olha como ele balança.
— Ah, moço, isso é turbulência!
— Será, olha! Vi um vídeo em que um especialista dizia que, quando o avião balança assim, desse jeito, ele cai.
— “Desse um jeito”? Mas, de que jeito e o especialista é especialista em quê?
Depois de uma hora ouvindo essas coisas, o avião pousou sem problemas. O “doidinho” levantou, pegou suas coisas e já ia saindo quando falou:
— É, escapamos! Infelizmente a viagem pra você continua.
— Naquele momento, pela primeira vez, ele sorriu.
Assim que levantamos voo, olhei para um tranquilo senhor, que acabara de sentar no lugar do doidinho, ao meu lado. Percebendo que eu não estava lá muito bem, perguntou:
— Está tudo bem, minha filha?
Engoli seco e respondi:
— Não sei não, moço. Mas se continuar desse jeito, essa coisa acaba caindo.

29 de ago. de 2025

GOTAS QUE CANTAM

  



Minha mãe é amorosa, paciente, companheira e, se dependesse dela, nem chorar eu choraria. A mãe da Rosinha, amiga da minha prima, tem uma mãe parecida, porém muito pobre. Na casa onde moram o telhado é de zinco. Não sei como dormem no verão com aquele calor e no inverno não morram de frio. Se fosse a menina quem nos contasse, talvez nem eu acreditasse, mas como foram os vizinhos… Em dia de chuva a coisa piora. São panelas e latas para conter as goteiras. “Cada gota tem um acorde”, diz Rosinha, preparando-se para cantar. Quando a chuva passa, todos se abraçam, cantam e dançam sem se lamentar. No frio, não é diferente. A mãe bota os pequenos para fora para brincar. Amarelinha, pique-esconde, jogo de bola ou qualquer coisa que as faça suar. Em noites de frio D. Selma tem por hábito deitar-se na cama dos filhos. Só após aquecê-la as põe para dormir. Tenho plena convicção de que o amor é resiliente, por conseguir esconder da criança a tristeza de nunca ter tido uma Barbie, uma bola de futebol, oficial, uma bicicleta ou a oportunidade de viajar com os pais. É isso ou é cego, tão cego que só um cão-guia, um par de óculos escuros e uma bengala branca podem afirmar.

22 de ago. de 2025

CADÊ ALICE?

 



        Não saberia pensar naquela amizade sem sentir esse aperto no peito. Lembrar da alegria e do agradecimento que devo a alguém e não demonstrar, essa pessoa não sou eu. Alegria porque, ao refletir a respeito, me ocorrem os momentos memoráveis e muito divertidos que compartilhamos. Às vezes, quando me lembro, preciso cobrir o riso para não pensarem coisas erradas de mim. Lembranças de gratidão. Gratidão pela nossa amizade, parceria e compreensão. Foi importante tê-la na minha vida nos momentos difíceis. Ela foi a pessoa que iluminou minha vida quando tudo escurecia, que experimentou a água antes de me dar para beber, e que apanhou na bunda quando o erro foi meu. Por estas e tantas outras coisas eu gostaria de vê-la novamente. Precisava lhe dar um abraço e voltar com ela à pracinha onde mamãe nos deixava brincar. Lamento que o tempo tenha passado e ela tenha se perdido. Certamente, não sei onde encontrá-la, mesmo achando que esteja escondida aqui, no meu coração.
Obrigada, Alice!