sexta-feira, dezembro 20, 2024

MEU PAI SE CHAMA FRANZ KAFKA

 


      Na mudança de um bairro no subúrbio para este em que estamos morando algumas coisas se perderam pelo caminho, mas nada mais importante do que a minha boneca Lili. Outras vieram para me consolar, mas não era o mesmo. Coisa de criança, considerando os meus 5 anos. Lili é daquelas que te escuta de boca calada, que vai aonde você a queira levar, que brinca da maneira que você gosta e faz tudo o que você quer tipo assim, desse jeito. Uma não cobrava ou reclamava da outra. Com o tempo fui perdendo o sorriso e até dormir que gosto tanto já não estava dormindo. Um dia meu pai me chamou: — senta aqui com o papai — bateu com a mão no sofá ao lado dele. — Papai recebeu uma carta endereçada a você. — Fiquei curiosa até porque quem escreveria carta para uma criança?
— Quem mandou ela, papai? — Foi o Kafka, minha filha — respondeu desamassando o papel sobre a perna. — Esse moço é o maior escritor que já conheci — disse olhando para mim. — E o que ele fala na carta? — Bem, minha filha, é o seguinte. Alguém teria visto uma boneca com a cara e a roupa bem suja, brincando numa rua perto da casa onde a gente morou. Era a primeira vez que ele via boneca brincando sem sua dona. Intrigado abaixou-se e perguntou pelo nome dela e quando ela disse foi que decidiu escrever para você. Olha, minha filha, esqueci de dizer que esse escritor de nome Kafka entende muito do assunto e o seu caso não é o primeiro. Outro bem parecido, já teria ocorrido, pelo que li em um dos livros que ele escreveu.
— Minha mãe diz que meu pai tinha esse poder e a luz que brilhava dos meus olhos clareava a sala por inteiro — diz ela sorrindo. Na esperança do homem resolver o problema eu voltei a sorrir e até me tornei um pouco mais doce naqueles momentos e se me perguntarem porque estou contando essas coisas, respondo; é que encontrei a carta que meu pai leu há 12 anos para mim. Era uma folha de caderno escrita a lápis, cuja letra se parecia com a dele abordando um assunto que li ontem no livro desse tal 
escritor.
Corri e me joguei nos braços do melhor pai de todo o mundo inteiro e que, por sinal, é o meu.

5 comentários:

Katerinas Blog disse...

A unique and inspiring piece of writing!
I liked it.

Jotabê disse...

Este texto me fez lembrar de um divertido filme francês onde uma moça tira um gnomo do jardim da casa de seu deprimido pai e passa a fazer montagens da pequena estátua com imagens de várias cidades pelo mundo, montagens que transforma em cartões postais que deixa na caixa de correio da casa de onde o gnomo foi surrupiado. No final do filme ela o recoloca em seu lugar original. E seu pai resolve viajar pelo mundo. Caso se interesse em assistir a esse filme, o nome em português é “O fabuloso destino de Amelie Poulain”. Eu assisti em um canal a cabo.

❦ Cléia Fialho ❦ disse...

Que relato mais doce e cheio de encanto! O gesto do pai, transformando a ausência em magia e a perda em um reencontro imaginário, é de uma ternura comovente. Cada palavra resgata a beleza da infância, onde as soluções para as maiores tristezas surgem do amor criativo de quem nos protege.

A conexão com Kafka é um detalhe poético que enriquece ainda mais essa memória. O pai, ao dar vida à narrativa, mostrou que mesmo na simplicidade de uma folha de caderno escrita a lápis, há espaço para construir mundos e devolver o brilho aos olhos de uma criança.

Essa história é mais do que uma lembrança; é uma celebração do amor incondicional, da capacidade de um pai em iluminar os dias de sua filha e transformar a saudade em ternura. Amei cada linha, como se pudesse ouvir a risada feliz ao final desse abraço, onde o tempo pareceu parar. 🖋️❤️

AFAGOS POÉTICOS EM SEU 💗
🐾

Reflexos Espelhando Espalhando Amig disse...

Ei Rô,
Você com essa sua
publicação me lembra
os bons livros que li do Kafka.
Eu gosto de leituras que nos
levam a entrar na mente dos
personagens. O Jotabê
citou um filme que assisti e
que me fez ver muitas nuances
da suposta realidade que vivemos,
mas ao vivenciar que é diferente
de vive-la, abre a cortina do perceber.
Não sei se você vai gostar do filme,
pois é como ler Clarice: uma verdadeira
viagem na mente. Sendo assim, costumam
taxar de loucura, mas não é.
É sim surrealidade, ou seja uma realidade
em super dose/overdose.
Adorei sua publicação e a
bonequinha também.
Bjins
CatiahoAlc.

olga disse...

Bella storia!Buon Natale e Capodanno.